A luta de Niéde Guidon para preservar o maior tesouro arqueológico brasileiro

Na porta do inferno d’A Divina Comédia, de Dante Alighieri, está o aviso tenebroso: Lasciate ogni speranza, voi che entrate, que em português quer dizer “Deixai toda a esperança, vós que entrais”. Em um lugar quase tão quente, a cidade de São Raimundo Nonato, a 521 quilômetros ao sul de Teresina, Piauí, a mesma frase em italiano, esculpida no portão de madeira, dá as boas-vindas a quem chega à casa da arqueóloga franco-brasileira Niéde Guidon. Segundo ela, a escolha dos dizeres, ali pintados com tinta vermelha, se deu por afinidade literária, apenas. Mas quem conhece Niéde, braba que só, sabe bem: pode ser também um recado aos visitantes indesejados ou, pior dos mundos, desesperança mesmo.

Niéde está cansada de lutar. Guardiã do maior tesouro arqueológico brasileiro, o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, com seus registros da vida do homem pré-histórico, ela pensa em se aposentar. E isso pode ser um tremendo problema, já que Niéde não preparou um sucessor. Aos 84 anos, cabelos curtos e brancos, a arqueóloga tem o ar cansado de uma combatente experiente. É uma senhora que se move com dificuldade, mas que ainda preserva a fala firme. Nasceu em Jaú, interior de São Paulo, filha de pai francês e mãe brasileira.

Formou-se em história natural na Universidade de São Paulo em 1959. Só foi estudar arqueologia em 1975, durante o doutorado na Sorbonne, em Paris, depois de “descobrir” as maravilhosas pinturas rupestres daquela terra seca do sul piauiense. Hoje, o parque soma 135 mil hectares nos municípios de Canto do Buriti, Coronel José Dias, São João do Piauí e São Raimundo Nonato, e concentra 1.354 sítios arqueológicos catalogados, sendo 183 preparados para a visitação turística. É a maior concentração de vestígios ancestrais do mundo, o que fez com que o parque fosse reconhecido como patrimônio cultural mundial da humanidade pela Unesco em 1991.

Os estudos de Niéde reviraram tudo o que se sabia sobre a chegada do Homo sapiens às Américas e geraram as primeiras brigas de gente grande que ela travou. Suas escavações encontraram vestígios ainda mais antigos do que a tese de que os primeiros seres humanos a habitarem o continente teriam vindo da Rússia aos Estados Unidos pelo estreito de Bering, 13 mil anos antes do presente, ou AP (forma de datar descobertas arqueológicas pela qual o dia 1º de janeiro de 1950 marca, arbitrariamente, o “presente”). São fósseis, urnas funerárias, ferramentas e pinturas rupestres com datações que vão de 59.000 AP a 5.000 AP. Apesar de terem as idades estimadas pelos melhores laboratórios de arqueologia da Europa e dos Estados Unidos, os artefatos carecem de aceitação plena pela comunidade acadêmica americana, que ainda banca a teoria formulada em 1950. E esta é só uma das brigas da vida de Niéde. “A tese deles está muito velha. Depois dela já foram descobertos novos vestígios no Brasil e na América do Sul que são bem mais antigos”, ela desdenha.

Mas a principal batalha de Niéde é interna. E política. Ou de falta de vontade política. A Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), entidade civil sem fins lucrativos criada por ela e outros pesquisadores em 1986 para cuidar do parque, precisa de pelo menos R$ 150 mil mensais para cobrir as despesas fixas, como o funcionamento dos acessos aos visitantes, rondas de combate à caça e segurança do museu a céu aberto. O parque não consegue gerar receita própria por falta de estrutura nas cidades ao redor. Não há bons hotéis e restaurantes, tampouco uma logística atraente para chegar lá. O aeroporto de São Raimundo Nonato, criado em 1993 e só inaugurado em 2015, funciona de forma precária. De carro, a estrada é boa, mas longa: a viagem leva cerca de sete horas desde Teresina.

Por seis anos, até 2015, o parque ficou sem receber dinheiro federal. O quadro de funcionários foi enxugado de 270 para 30 contratados. E os portões chegaram a ser fechados por falta de recursos antes que a FUMDHAM conseguisse uma verba emergencial com o Ministério do Meio Ambiente, no ano passado. Atualmente, o parque tem dinheiro para cobrir os custos fixos até meados de 2018 (em janeiro foram depositados R$ 782.470,30 na conta da fundação). Depois desse prazo, se nada for feito, o parque deve voltar a fechar. Por tudo isso, Niéde não sabe se quer continuar brigando. “A falta de dinheiro é nossa principal e constante ameaça”, lamenta.

O HOMEM AMERICANO

Até junho de 1963, as únicas pinturas rupestres encontradas no Brasil estavam em Minas Gerais. No Piauí, as figuras deixadas pelos ancestrais nas paredes de cavernas e paredões rochosos do sertão eram chamadas de “desenhos de índios”, sem importância para os locais. Niéde nunca tinha ouvido falar de São Raimundo Nonato. O primeiro contato aconteceu durante uma exposição sobre arte rupestre do Brasil organizada pela USP no Museu do Ipiranga, em São Paulo. Um visitante vindo de São Raimundo pediu para chamar alguém da organização. Queria mostrar fotos de registros parecidos com os da exposição. “Na verdade, aquilo era completamente diferente do resto!”, relembra Niéde. Ela ficou tão impressionada com as fotos que, em dezembro daquele ano, dirigiu sozinha de São Paulo ao Piauí para ver com os próprios olhos. Mas ela não chegou. Uma ponte sobre o Rio São Francisco havia caído e a forçou a dar meia-volta.

Pouco depois teve de deixar o Brasil às pressas, após ser alertada por um amigo da família de que, como militante de movimentos políticos de esquerda na USP, estava na mira do regime militar e seria presa. Trancou seu apartamento em São Paulo e foi para a França, usando passaporte francês. Voltou em 1970, trazida pelo governo da França para uma expedição arqueológica em Goiás. E depois de trabalhar por alguns dias no Centro-Oeste, aproveitou para finalmente ir ver as tais pinturas no Piauí. Os habitantes do povoado a levaram aos sítios arqueológicos e ela ficou maravilhada. “Na Sorbonne nos ensinavam que a arte rupestre das Américas era muito primitiva, parecia desenho de criança. Mas o que eu via nos paredões piauienses eram criações fantásticas, complexas, com perspectiva, e contavam muito sobre o homem pré-histórico que vivia aqui”, explica. Três anos depois, o governo francês bancou a vinda de Niéde e de sua equipe, formada boa parte por alunos seus da Sorbonne, onde tinha passado a lecionar. Com as primeiras coletas, elaborou um projeto para o Banco Interamericano de Desenvolvimento sobre a viabilidade turística da região. Levantou US$ 1,6 milhão e fundou o parque. Era 1979.

O DIABO DA ZIKA

A casa de Niéde fica nos fundos da FUMDHAM e do Museu do Homem Americano, em São Raimundo Nonato. Contrariando a primeira impressão intimidadora da placa dantesca, o que se vê da entrada é um sofá antigo cheio de ursinhos de pelúcia, brinquedos das cadelas Fifi, Bolinha, Anouk, Frida e Mimosa, os xodós da pesquisadora. Um jardim florido com rosas e hibiscos vence a terra seca, dura e ocre. Fora dos muros baixos, o verde que brotou com as chuvas começa a dar lugar ao cinza morto, típico da caatinga e do semiárido.

Niéde passa boa parte do dia sentada em uma sala com o ar condicionado marcando 20°C e ao lado de dois umidificadores a todo vapor. São 10h30, e lá fora o termômetro marca 37°C. O ar seco queima a respiração. E a pesquisadora que se esforça para levantar da cadeira e nos cumprimentar lembra pouco a mulher de fibra que, quase sozinha, deu vida àquela unidade de preservação do patrimônio da humanidade. “Há um ano peguei o diabo da zika e do chikungunya. Fiquei com artrose e mal consigo caminhar”, reclama, pondo a mão nas articulações. Sim, o Aedes aegypti fez com Niéde o que ninguém conseguiu: a golpeou forte no corpo e na alma. A artrose, doença incurável e dolorida, impede que ela visite diariamente o parque, como fazia até a derradeira picada do mosquito. “A verdade é que a vida aqui é muito chata, entende? Não tem nada para fazer! Não posso ir a um cinema, a um show, porque não tem. Minha distração e minha alegria eram visitar o parque todos os dias. Não consigo mais. Não posso mais ver as coisas bonitas que tem lá. Tenho de ficar trabalhando daqui de casa. E é um saco.”

É mais que um saco. A falta de estrutura da cidadezinha no sul do Piauí priva Niéde de descansar como ela imagina em seus cada vez mais frequentes momentos de desânimo. Aposentada, sem filhos ou herdeiros, parece um tanto só: não se apegou a ninguém para dividir também seus projetos de vida. Então, ela fala em se mudar de vez para uma maison de retraites, como são chamados os asilos para idosos que o governo francês mantém nos arredores de Paris. E esses pensamentos doem ainda mais do que a artrose, porque uma Niéde tirando o time de campo significa incerteza para o parque. Quem fará o que ela fez e ainda faz? Niéde diz que em São Raimundo Nonato e adjacências nunca apareceu alguém capaz de assumir o leme. Uma boa alma para elaborar projetos, com domínio de outros idiomas e, sobretudo, com disposição e paixão para brigar por um negócio para o qual ninguém fora da comunidade científica dá bola. Mas a verdade é que o fato de Niéde ser uma centralizadora de mão cheia também não ajuda. “Como [o governo em] Brasília é ruim de dar respostas, é preciso ter disponibilidade para ficar indo até lá. Por isso nenhum brasileiro quis ficar no meu lugar”, ela explica. “Então eu vou ficando, ficando, e pronto.”

O desânimo parece mesmo ter pegado Niéde de jeito, mas ela faz questão de reafirmar sua força na última resposta, antes de partirmos. Questiono como o cidadão comum pode ajudar o Parque Nacional Serra da Capivara. “Quer que eu fale a verdade?”, ela retruca, com um risinho. “Indo a Brasília tocar fogo naquilo e não deixar ninguém sair de lá de dentro!” Eita! A velha Niéde de guerra respira. Que venha o inferno.

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